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Lutero e a filosofia!


            Martinho Lutero nasceu em 1483 na Alemanha. Foi monge agostiniano e toda a sua atividade social e política se desenvolveu numa época em que se encontra já desfeito o sonho do império universal da Igreja. Lutero, imbuído de uma profunda e sincera religiosidade e possuidor de uma admirável eloqüência, diante da situação desregrada de membros da Igreja e dos altos gastos e cobrança de impostos pelos mesmos, manifesta seu descontentamento à Santa Sé no pontificado de Júlio II. A este julga o espírito de ostentação que o leva á construção de ricos e belos palácios como a Basílica de São Pedro de Roma e a prestar auxílio aos grandes artistas de seu tempo.
            Diante desses fatos e da luta política e dos desmandos morais que se verificavam no corte dos papas, Lutero é visto numa atitude de rebeldia, que se torna franca e pública no pontificado de Leão X, em que a cisão religiosa e dogmática se vem a dar. Nessa altura, o motivo confessado é venda de indulgências, que se torna num negócio bancário e que Lutero denuncia como forma ímpia e pecaminosa de obtenção de lucro.
            A razão que separa Lutero da Igreja de Roma está ligada ao convite feito a ele para apresentar-se ao papa e esse convite é recusado pelo monge agostiniano. Este formula em Augsburgo, perante a Dieta Imperial quer o seu protesto, quer as suas acusações. Esta atitude de oposição dogmática seria confirmada um ano depois quando declara também publicamente a sua concordância com os Hussitas, a seita erética da Boêmia. Aqui está o verdadeiro fator que levou Lutero á oposição às leis de Roma.
            Enquanto a Igreja permanece fiel ás teorias do racionalismo aristotélico e à doutrina do livre-arbítrio, que responsabiliza os homens por seus atos e condiciona o caminho da salvação, Lutero repudia estes princípios dogmáticos e partindo da inelutável miséria da condição humana e da impossibilidade de decifrar os desígnios divinos, indica como únicas vias a da fé irracionada e a graça de Deus, em que se contém, na sua pureza original, a doutrina agostiniana da presdestinação.
            Para Lutero, a razão não passa de um instrumento do Diabo e só o favor divino poderá salvar o homem de sua miserável condição. Por outro lado, torna-se, mesmo que involuntariamente, o campeão do nacionalismo político e da independência dos príncipes alemães. Este princípio nacionalista vem expresso em sua obra Manifesto à nobreza cristã da nação alemã, em que propõe um concílio para que Roma volte á primitiva pureza evangélica, acaba por restabelecer os antigos privilégios das igrejas nacionais que nunca tinham existido.
            Este manifesto provoca a ira de Leão X que reage com a bula Exsurge Domine, que Lutero queima publicamente em 1520. Segue-se, então, a excomunhão papal e a ruptura definitiva.
             É necessário destacar que a figura de Lutero foi alvo de muitas interpretações ao longo do período histórico que sucedeu a reforma protestante. Ele, descendente da mineiros e filho do povo, revela-se, na luta social que se vai travar e que em parte se funda nas suas aspirações de emancipação religiosa, não o defensor de liberdades populares, mas o seu mais ardente e apaixonado adversário.
            Pode-se dizer que foi a aliança e prestígio político e moral com os príncipes alemães que impediram que uma revolução social obtivesse qualquer sucesso. Isso é verificado segundo Monteiro (1963, p.16):

Lutero transformou-se assim, automaticamente, no campeão de uma classe – a dos príncipes e dos senhores – como se virá a transformar, or idêntico e talvez inconsciente processo, depois da tentativa de unificação política e religiosa de Carlos V (nem sempre bem sucedida), em campeão do nacionalismo e da inteira independência dos Estados.

            E será justamente a unificação política e o governo de Carlos V que mais que qualquer outra razão especificamente religiosa virá assegurar o sucesso e a expansão territorial e histórica do protestantismo na Inglaterra, nos países do Norte da Europa e, em parte, na própria Alemanha.        
           
1.1 LUTERO E A FILOSOFIA

           
            Com efeito, Lutero irrompeu na vida espiritual e política de sua época como um furacão que mobilizou toda a Europa e cujo resultado foi a ruptura do mundo cristão. De acordo com Bihlmeyer (1965, p.19),

A reforma da Igreja, tão urgentemente necessária e tão ardentemente invocada, não foi efetuada tempestivamente, e, portanto, no segundo decênio do século XVI desencadeou-se a terrível catástrofe da cisão religiosa. [...] Ela quebrou a unidade e a supremacia da Igreja católica no Ocidente e destruiu a harmonia universal de Igreja e cultura, da qual havia recebido sua grande característica a Idade Média. De então em diante a cristandade se achará dividida em dois grandes campos opostos, o católico e o protestante.

            Dentre os numerosos escritos de Lutero, podemos citar:
1)     Comentário à epístola dos Romanos (1515-1516);
2)       Teses sobre as indulgências (1517);
3)       Disputa de Heidelberg (1518);
4)       Apelo à nobreza cristã de nacionalidade alemã pela reforma do culto cristão;
5)       Servo arbítrio.

Do ponto de vista histórico Lutero merece grande importância, mas também na filosofia seu pensamento pode contribuir porque verbalizou a instância de renovação que os filósofos da época fizeram valer, seja por algumas valências teóricas intrínsecas ao seu pensamento religioso, seja pelas conseqüências que o novo tipo de religiosidade por ele suscitado exerceu sobre os pensadores da época como Hegel e Kierkegaard, por exemplo.
Entretanto, a posição de Lutero em relação aos filósofos é totalmente negativa. Para ele, a filosofia era vã sofisticação e fruto da soberba própria do homem de querer basear-se em sua própria razão e forças e não na única que salva, a fé. Ele defendi também uma reforma nas universidades, pois tudo que o papa ordenou servia apenas para conduzir ao erro e ao pecado.

1.2 LUTERO E O HUMANISMO

            As relações de Lutero com o humanismo estão bastante claras. De um lado ele verbaliza o desejo forte de renovação religiosa, um anseio de renascimento para uma nova vida e uma necessidade de regeneração. Nesse sentido, a reforma pode ser vista como um dos resultados desse grande e multiforme movimento espiritual.
            Lutero retoma e leva ás últimas conseqüências o princípio de retorno às origens, às fontes e aos princípios que os humanistas haviam procurado realizar através do retorno aos clássicos. O retorno ao Evangelho tão difundido por Erasmo de Roterdã foi motivo de revolução e subversão para Lutero. Segundo ele a tradição mortifica o Evangelho. Este retorno significa não apenas um redimensionamento, mas a eliminação do valor da tradição.
            Esses fatores comportam uma ruptura com a tradição religiosa e com a tradição cultural, que em muitos aspectos constituía o substrato daquela. O humanismo é rejeitado em bloco, bem como a especulação filosófica que considera a razão humana como não sendo nada diante de Deus e visto que confia inteiramente a salvação à fé.

1.3 A TEOLOGIA DE LUTERO

            Os elementos básicos da teologia de Lutero são basicamente três:
1)     A doutrina da justificação pela fé;
2)     A doutrina da infalibilidade da Escritura, considerada como única fonte da verdade;
3)     A doutrina do sacerdócio universal e a decorrente doutrina do livre exame das Escrituras.

A doutrina tradicional da Igreja era a de que o homem se salva pela fé e pelas obras. Entretanto, Lutero contestou severamente o valor das obras porque, como afirma Reale (1990, p.107),

durante muito tempo, Lutero sentiu-se profundamente frustrado e incapaz de merecer a salvação através de suas próprias obras, que lhe pareciam sempre inadequadas, e, conseqüentemente, a angústia diante da  problematicidade da salvação eterna o atormentou incessantemente. A solução que adotou, afirmando que basta a fé para salvar-se, libertou-o completa e radicalmente dessa angústia.

            A fé justifica sem obra alguma. Ainda que dada a fé daí decorrem boas obras, Lutero nega que elas possam ter aquele sentido e aquele valor que tradicionalmente lhes eram atribuídos. Essa tese pressupõe toda a questão das indulgências atingindo os próprios fundamentos da doutrina cristã.
            Concomitante á questão da fé estava a infalibilidade das Escrituras. Só a Escritura constitui autoridade infalível de que necessitamos. O papa, os bispos, os concílios, os santos e toda tradição não só não beneficiam, mas obstaculizam a compreensão dos textos sagrados. Segundo Reale (1990, p.109) uma diferença existia entre Lutero e os humanistas que, inicialmente, tinham em comum a mesma posição sobre os textos sacros:

Os estudiosos observaram que, na Bíblia, os humanistas procuravam algo diferente do que Lutero buscava: com efeito, os primeiros queriam encontrar nela um código de comportamento ético, as normas da vida moral, ao passo que Lutero queria encontrar a justificação da fé, diante da qual (como ele a entendia), considerado em si mesmo, o código moral perde qualquer significado.

            Como conseqüência da terceira razão teológica de Lutero tem relação com a idéia de que um cristão isolado pode ter razão contra um concílio inteiro, e estiver iluminado e inspirado por Deus, não sendo necessária uma casta sacerdotal, dado que cada cristão é sacerdote em relação à comunidade em que vive.
            Todo homem pode pregar a palavra de Deus. Assim, é eliminada a distinção entre clero e laicato, embora não seja eliminado o ministério pastoral enquanto tal, indispensável em uma sociedade organizada.

1.4 CONSEQUÊNCIAS DO PENSAMENTO DE LUTERO

            O homem só pode se salvar se compreender que ao pode ser o artífice de seu próprio destino. Sua salvação não depende dela, mas de Deus. O homem precisa aprender a desesperançar-se de si mesmo para abrir caminho para a salvação, entregando tudo a Deus e de sua vontade tudo esperando. Considerado em si mesmo, sem o Espírito de Deus, o gênero humano é o reino do Diabo, é um caos confuso de trevas.
            Outra consideração é a concepção de livre-arbítrio. Este é sempre escravo de Deus ou do Demônio. Lutero comparava a vontade humana a um cavalo que se encontra entre dois cavaleiros: Deus e o Diabo. Conforme o cavaleiro seria o caminho a ser percorrido. A quem acha que desse modo fica predestinada a vida humana, Lutero reponde com firmeza afirmando que Deus é Deus precisamente porque não precisa prestar contas daquilo que quer e faz. Ele está bem acima daquilo que parece justo ou injusto para o direito humano.
            Parece que assim, a natureza e graça ficam separadas, bem como razão e fé. Quando age de acordo com a sua natureza, o homem outra coisa não pode senão pecar. Quando pensa de acordo com o seu intelecto, outra coisa não pode fazer senão errar. As virtudes e pensamentos dos antigos são vícios e erros.
            É evidente, então, que para Lutero, nenhum esforço humano pode salvar o homem, somente a graça e misericórdia de Deus. Essa é a única certeza que nos dá a paz.

REFERÊNCIA

REALE, Giovanni. História da filosofia: do humanismo a Kant. V.3.São Paulo: Paulinas, 1990.

Eduardo Moreira Guimarães
5º Período de Filosofia
Diocese de Cornélio Procópio - PR


















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