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MARIA DE MINHA CIPOTÂNEA


Quando ainda crianças cantávamos muitas vezes nas “rezas’ do terço em família e nas novenas de natal uma bonita e singela música que o Pe. Zezinho carinhosamente e inspiradamente compôs, Maria de minha infância, que dizia assim: “Eu era pequeno, nem me lembro, só lembro que à noite aos pés da cama, juntava as mãozinhas e rezava apressado, mas rezava como alguém que ama. Nas Ave-Marias que eu rezava, eu sempre engolia umas palavras; e muito cansado acabava dormindo, mas dormia como quem amava. Ave Maria, Mãe de Jesus, o tempo passa, não volta mais. Tenho saudade daquele tempo que eu te chamava de minha mãe. Ave Maria, Mãe de Jesus. Ave Maria, Mãe de Jesus”.
                  Quantas vezes cantamos essa canção em nossa infância, moleques, pequeninos, na nossa inocência e pureza. Quantas vezes nos dirigimos candidamente à imagem da Mãe de Deus e a ela elevamos esse canto do mais profundo do nosso coração e da nossa alma infantil. Quantas vezes o nosso coraçãozinho não se encheu de orgulho ao cantarmos bonito para a Mãe de Deus e ver em seu rosto aquele sorriso de quem trouxe Jesus ao mundo e de quem, naquela hora nos colocava no colo.
                  Isso tudo acontecia em Cipotânea, cidade onde corre leite e mel. Cidade de gente simples, de gente boa e de gente de muita fé. Cidade que marca as pessoas que a visitam pela hospitalidade, pela comida mineira, pelo jeito de falar, pelo jeito de conhecer todo mundo que passa na rua, pelos bancos que ficam na beira da calçada pra “por a prosa em dia” no finalzinho da tarde. Cidade que encanta pela fé em Deus, pelo amor à Maria e pela devoção fiel ao santo padroeiro São Caetano.
                  É mês de maio. É mês de Maria. Em Cipotânea, um mês diferente de todos os outros. É mês das mães, mês do trabalhador, mês de muitos aniversariantes. Mas em Cipotânea é exclusivamente mês de Maria! Mês da Mãe de Deus e nossa, mês da Virgem que trouxe o Salvador, mês da flor mais bela que existiu, mês da mais bonita rosa do jardim de Deus. Como dizia a cantiga antiga lá da Rádio São Caetano em disco de vinil ainda: “Nossa Senhora é uma rosa, Nossa Senhora é uma rosa...”. Para nós cipotaneanos, ela é a rosa por excelência, é a rosa que não tem espinhos, mas que tem um doce e maravilhoso perfume, que permanece nas mãos daqueles que o distribuem: “Fica sempre um pouco de perfume, nas mãos que oferecem rosas, nas mãos que sabem ser generosas”.
                  É mês de Maria! É, portanto, mês de vermos o Pe. Rogério todos os dias. É mês de ver a Maria ‘do padre’ todos os dias! É mês de ver a banda de música Santa Cecília, sob o comando do Maestro Cláudio, tocar na procissão. É mês de ver o Coral Rainha da Paz cantar e encantar as noites de Nossa Senhora. É mês de ver o Zé Reis gritar o leilão pra Nossa Senhora. É mês de ver aquelas mais de cento e cinqüenta crianças subirem e descerem as escadarias da Igreja Matriz para coroar Nossa Senhora.
                  É mês de ver o pessoal do João Prosa e do Morro das Pedras, da rua Capitão Gomes e do Campo, das praças, do lava-pés e da Vila do Carmo, do Bairro do Dico, da rua do Caminho e da rua da Fábrica, do bairro Santa Cruz e de tantas comunidades rurais sair de suas casas e se dirigirem à Igreja Matriz para prestar culto à Nossa Senhora. À tardezinha, calmamente vemos um movimento diferente na cidade daquele que acontece comumente. O bar, a padaria e, às vezes, até a loja ficam abertos até a hora da reza porque a cidade vai estar mais movimentada. De cá e de lá, de um canto e de outro vão surgindo fiéis que vão pra Igreja rezar a Nossa Senhora.
                  No finalzinho de abril já estão todos curiosos para ver o “trono” de Nossa Senhora preparado pela Maria, pela Lucinha e por outras senhoras bondosas. Comadre, a senhora já passou na Igreja? Viu a Maria ‘do padre’ lá arrumando o altar do mês de maio? Comadre, a senhora já viu como ficou bonito o altar de Nossa Senhora? Ê Maria, ta ficando bonito, hein! São comentários que comumente escutamos nessa época. Mas também, cada ano tem algo de diferente, uma criatividade inovadora que enche os nossos corações, as nossas vistas e, comumente, o nosso orgulho de pertencer àquele torrão tão querido.
                  Nossa Senhora? Ah, é aquela bonita imagem de Nossa Senhora das Dores que, vestida de branco, derrama suas bênçãos sobre todos nós. Mas é ela a razão de todo esse empenho e de toda esta festa em maio? Certamente não. Ela é Medianeira, ela aponta para o alto, para Cristo: “Tudo por Jesus, nada sem Maria”! Ela é intercessora, mas o Sol é Jesus, seu filho amado. Como diz mais uma vez o Pe. Zezinho: “O povo te chama de Nossa Senhora, por causa de Nosso Senhor. O povo te chama de Mãe e Rainha porque Jesus Cristo é o rei do céu”. A razão da nossa fé não está nela, mas passa por ela. Ela é Mãe, ela é nossa advogada. Ela é nosso refúgio! Ela é aquela que proporcionou o encontro de Deus com o homem, como nos mostrou o Excelentíssimo Arcebispo de Mariana Dom Oscar de Oliveira (1968, p.115-116), hoje na glória do Pai:

Em seu infinito poder e sabedoria, poderia Deus realizar a redenção do gênero humano de maneira diversa da que realizou. Determinando, porém, que a segunda Pessoa da Santíssima Trindade assumisse a natureza humana como instrumento de salvação, desde o momento em que escolheu Maria e Nela se encarnou, tornou-se Ela protagonista não secundária deste plano divino. Não se conclui disso ter sido Maria causa da Redenção. A Virgem Santíssima foi o meio escolhido para que o Verbo de Deus tomasse a nossa frágil natureza. A ação do Espírito Santo, que é Amor, transforma-A em “Mãe do Belo Amor e da Santa Esperança”. Eleita dentre os eleitos, foi a Virgem enriquecida de santidade, excedendo em beleza espiritual a todas as criaturas desde a sua Conceição Imaculada. [...] Assim como Cristo nasce de Maria, indiretamente nos dá Ela o princípio da Redenção. Foi destarte, Maria a primeira criatura que elevou a Deus todas as coisas, porque sendo isenta da desordem, recompôs a ordem perturbada pelo pecado.

                  “É Maria, a Mãe de Jesus. É Maria, a Senhora da luz”. É então Maria nosso incentivo e nossa motivação de, todas as noites, não esquecermos do nosso compromisso. Por volta das dezoito e trinta horas começamos a perceber na praça principal o movimento dos fiéis. Momento bonito, de encontro, de conversa, de ver como anda a vida. Momento de encontrar os amigos, de rezar juntos e de fazer memória de tantos que fizeram esse caminho antes de nós. Momento de vida, de alegria, de paz e de fé.
                  Momento de subir as escadarias e de encontrar o Pe. Rogério lá na sacristia. Chegar perto e dizer: “Ô sô Padre!”, “E o Galo, como é que anda?”, momento de pedir uma benção daquele que está conosco a mais de quarenta anos. Momento de ver um homem que se tornou padre segundo o modelo do Bom Pastor. Momento de ver o nosso Pe. Rogério. É hora de ver também a Maria, a Lourdes, a Zizi, a Terna, a Gorete, a Santa, a São, o Cláudio, o Caetano, o Zé Rosa e o Zé Vitor, dentre tantos outros escolhendo os cânticos para a reza e para a missa.
                  É comum ter que ajudar a Tia Lourdes a levar o teclado lá pra perto do coral ou ainda ver o Betinho ajustando a caixa de som, ou até mesmo o Zé Vitor e Zé Rosa acertando aqueles violões. É momento de preparação pra reza de Nossa Senhora e pra Santa Missa. Tem que ficar tudo bem bonito, porque pra Deus, os cipotaneanos fazem sempre o melhor.
                  É tradição as orações do Pe. Rogério em latim, o canto das três Ave-Marias em melodias belíssimas só encontradas em Cipotânea e, é claro, da Ladainha de Nossa Senhora também em latim. Afinal, todos temos que responder ora pro nobis, quando não vem um orapronobi ou orapronobes ou coisa do gênero! Mas por trás de tudo isto está a fé e o jeito bonito de celebrar Maria.
                  Tudo acontece como de costume. A reza do mês de maio no início, depois a Santa Missa e por fim, o instante mais esperado: a coroação de Nossa Senhora. Todos querem saber quem é a coroante daquele dia. Filha de quem? Canta bonito? E todos, após a comunhão, saindo de seus bancos, vão até perto do presbitério e ali acompanham a entrada das crianças pela longa nave central da Igreja cantando junto com elas. Depois um silêncio anormal em Cipotânea. Todos atentos, querendo ouvir as meninas cantarem à Nossa Senhora. Aí é um verdadeiro espetáculo de fé e emoção. Cantos maravilhosos compostos e ensaiados por bondosas senhoras que todas as tardes de todos os dias deixam seus afazeres e vão para a Igreja ensaiar com essas meninas. Vozes singelas e puras, vozes de coraçõezinhos puros e encantados com o fascínio de coroar Nossa Senhora. E não serve qualquer coisa. Para a Mãe de Deus sempre o melhor. Insistem, ensaiam novamente, até que tudo esteja bonito. Aí é só esperar à noite e vir fazer tudo como no ensaio, é claro que com um brilho maior.
                  É difícil encontrar em Cipotânea uma menina que nunca tenha coroado Nossa Senhora. Todas as meninas passam por essa fase. Um dia uma, outro dia outra, e assim vai correndo o mês. O fato é que todos os dias Nossa Mãe do Céu é honrada com a homenagem das crianças.É uma verdadeira apoteose de fé e de amor a Nossa Senhora.
                  O Pe. Rogério fica sentado observando e se maravilhando com tudo. As crianças, como o trono não comporta todas, ficam em volta do pároco que logo pergunta: “Você é filha de quem”? Ah, fui eu que batizei teu pai, mãe, casei e batizei você! Afinal, são mais de quarenta anos. Ele é nosso pai, pastor, amigo, é gente nossa. É o nosso Pe. Rogério! Terminando a coroação o padre puxa as palmas e grita um grande viva a Nossa Senhora. O sacristão, Betinho, toca a campainha e todas as crianças descem correndo do trono. É a hora de ganhar as balas, doces, lembrancinhas que as mães oferecem.
                  Terminada a celebração e as homenagens a Nossa Senhora, todos vão para casa porque precisam levantar cedo, trabalhar e novamente voltar á Igreja porque o mês só está começando. E assim, durante todo o mês de maio a Igreja Matriz recebe seus fiéis que prestam homenagens à Mãe de Deus, à Nossa Senhora.
                  Durante todos os dias as preces são as mais diversas e a confirmação das graças recebidas das mãos de Maria são também de vários fiéis. Isso atesta que o nosso povo é um povo de oração e de muita confiança em Deus e em Maria, mulher que Ele escolheu para trazer ao mundo seu Filho Jesus. É Maria quem intercede por cada cipotaneano que deixa seus afazeres diários e a ela acorre como filho querido. É Maria que acolhe em seu manto maternal cada família que ainda cultiva as tradições recebidas de seus antepassados e que não vive sem a fé no Deus da vida e da esperança. É Maria, que todas as noites está a esperar as almas ansiosas por salvação a encontrar seu filho na Eucaristia, na partilha do pão na comunidade.
                  É por isso que eu tenho orgulho de cantar com o Pe. Zezinho, ainda hoje, essa maravilhosa canção:
Eu vim de lá do interior,
Onde a religião ainda é importante
Lá se alguém passa em frente da matriz
Se benze, pensa em Deus
E não sente vergonha de ter fé!

                  É de lá, é de Cipotânea, meu torrão querido que eu vim e que quero sempre lá voltar. É de lá que meus progenitores plantaram em mim a chama da fé e da vocação. É de lá que tantas vezes eu rezei e cantei à Mãe de Deus pedindo sua valiosa intercessão. É de lá que o mundo precisa ouvir o canto simples e bonito que encanta corações e que transforma vidas: “Eu confio em Nosso Senhor, com fé, esperança e amor”. Ele é a razão do nosso ser cristão, ele é a razão do nosso compromisso de batizados. Ele é a razão do nosso ser missionário. Ele é a razão do nosso ser de Maria!
                  E nós, cipotaneanos ausentes, espalhados por tantos lugares desse Brasil e até do mundo, creio que podemos apenas lembrar com saudade como os poetas (Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco):

Oh que saudade do luar da minha terra
Lá na serra branquejando, folhas secas pelo chão
Este luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade, do luar lá do sertão!
Se a lua nasce por detras da verde mata
Mais parece um sol de prata, prateando a solidão
E a gente pega na viola e ponteia
E a canção e a lua cheia, a nascer no coração
Não há, ó gente, oh! Não, luar como esse do sertão
Não há, ó gente, oh! Não, luar como esse do sertão

MARIA DE MINHA CIPOTÂNEA!



Eduardo Moreira Guimarães
5 Período de Filosofia
Diocese de Cornélio Procópio – PR

REFERÊNCIA

OLIVEIRA, Dom Oscar de. Virgem Maria: mãe de Deus e mãe dos homens. Mariana (MG): Editora Dom Viçoso, 1968.

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