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VIDA, DOM DE DEUS

O PRESENTE TEXTO FOI ELABORADO PENSANDO-SE NUMA PALESTRA PARA UM GRUPO DE FUNCIONÁRIOS DE UM HOSPITAL CATÓLICO TENDO EM VISTA A DOUTRINA MORAL CATÓLICA.

Senhores e senhoras, distintos colaboradores deste hospital, boa noite!

“Com efeito, cada homem, desde o primeiro momento da sua vida, é o sinal evidente do amor fiel de Deus pela humanidade, é o ícone vivo do ‘sim’ do Criador à história dos homens, uma história de salvação que se realizará em comunhão plena com Ele, na alegria da vida eterna. De fato, cada ser humano, desde a sua concepção, é uma unidade de corpo e alma, possui em si mesmo o princípio vital que o levará a desenvolver todas as suas potencialidades, não só biológicas, mas também antropológicas”[1].

            Nosso desejo hoje é refletir um pouco sobre o valor da vida, tendo como pano de fundo “A vida como dom de Deus”. Nosso instrumento de trabalho será, em grande parte, a Encíclica do Papa João Paulo II Evangelium Vitae[2]. O Evangelho da vida, adverte-nos o documento, está no centro da pregação de Jesus. Por que? Porque a vida é de Deus, pertence a ele como bem apresenta nossa temática. Acolhido pela Igreja ela mantém-se fiel a esse Evangelho e procura difundí-lo em todos os tempos e culturas (n. 1). O homem é chamado, assim, a aderir a esse Evangelho, a buscar uma plenitude da vida que se estende para além da sua existência terrena, porque é participação da própria vida de Deus, mas está assentada na vida terrena, no hoje da sua história.
            Com isso, a antropologia cristã afirma que a vida temporal é condição basilar para a vida futura e a dignidade da pessoa. Isso porque a vida humana é parte integrante do processo da existência humana. Não teremos uma vida futura, afirma a Igreja, que não prescinda dessa vida agora. A vida eterna é a plenificação dessa vida que ora se vive. É a realidade penúltima da existência e, por isso mesmo, é uma realidade sagrada que é confiada a cada homem e cada mulher para que cuide, guarde com sentido e responsabilidade e, mais ainda, que leve essa vida terrena à perfeição no amor pelo dom de nós mesmos aos irmãos (n. 2).
            Por isso mesmo, o cuidado da vida humana é de todas as pessoas. Do crente e do não-crente. Porque todo homem, pode chegar pela luz da graça a conhecer a lei natural inscrita em seu coração. A vida humana, portanto, não é de dever apenas da família, ou dos pais, ou dos profissionais da saúde (embora esses sejam chamados a cuidar diligentemente da vida nas suas fases mais críticas), mas é responsabilidade de toda a humanidade, de todo ser humano. No entanto, de modo particular, os crentes em Cristo devem ser autênticos defensores da vida. E mais ainda nós, que trabalhamos neste hospital que carrega o nome de católico. Aqui, sobretudo, a vida precisa ser amada, respeitada. Aqui se é chamado a mostrar a felicidade e a importância, o valor da vida mesmo nas suas condições mais difíceis e dolorosas. Já o Concílio Vaticano II, grande evento eclesial, afirmava: “Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem” (Gaudium et Spes, n. 22). Se o próprio Deus uniu-se à fragilidade da vida humana, nós somos convocados a continuar a obra do Filho de Deus de dar a vida, de anunciar aos homens de todos os tempos o Evangelho da vida, a esperança e a alegria de viver em cada época da história.
            A Igreja, nesse sentido, valoriza o homem desde a sua concepção até a sua morte natural. Deus é quem dá a vida e somente ele é quem pode toma-la de volta. por isso a importância do quinto mandamento: “Não matarás” (Ex 20, 13). A Igreja, nesse sentido, respeita e valoriza o homem, o homem vivo, que constitui seu primeiro e fundamental caminho. Se até Deus fez-se caminho no homem, a Igreja continua essa tarefa. No entanto, não são poucas as ameaças que afligem a vida humana. E elas estão presentes também aqui. Aqui é o lugar do cuidado da vida, do respeito e do amor à vida! Entretanto, quantos são aqueles que visam outros bens e não o bem estar da pessoa humana. Sobretudo quando ela é débil e indefesa.
            Atualmente, as antigas causas graves de morte como a miséria, a fome, a guerra, as epidemias, a violência, vem juntar-se com outros males que ceifam a vida. A Igreja interpela fortemente contra todos os atentados à vida, já asseverava o Vaticano II, seja homicídio, genocídio, aborto, eutanásia, e suicídio voluntário. A Igreja sofre com todas essas realidades e ainda com tudo que viola a integridade da pessoa humana como as mutilações, tormentos corporais e mentais, tudo que ofende a dignidade da pessoa como as condições subumanas de sobrevivência, as más condições de alimento, moradia, as mal infraestruturas da prisões, a prostituição, o comércio e o tráfico de pessoas, as condições escravas de trabalho, o lucro assoberbado em detrimento do trabalho oneroso de muitos.
            Mais grave ainda são os males contra a vida advindos do progresso científico e tecnológico. São problemas novos, inéditos, mas que tocam profundamente na responsabilidade de todos com a vida: o homem mesmo, a política, a economia, a sociedade, a cultura, as áreas da saúde, da técnica, do conhecimento. E o problema ainda maior é a legitimação de certas práticas de atentado contra a vida serem legitimados por muitos Estados. Além de infringirem valores de suas constituições, é um sintoma preocupante, afirma o Papa (n. 4), porque apresenta uma derrocada moral. As opções consideradas até então como abomináveis passam a ser, de pouco a pouco, socialmente aceitas. O Papa chega a falar bem de perto a nós, médicos e médicas, profissionais da saúde e do cuidado da vida: “A própria medicina que, por vocação, se orienta para a defesa e cuidado da vida humana, em alguns dos seus setores vai-se prestando em escala cada vez maior a realizar tais atos contra a pessoa, e, deste modo, deforma o seu rosto, contradiz-se a si mesma e humilha a dignidade de quantos a exercem” (n. 4).
            Aqui encontra-se um grave dilema: a falta de discernimento em escolher o bem do mal, o bom do ruim, o que edifica e o que mata. Todos os problemas, digamos por conta da natureza, como a fome, a miséria, a desnutrição, são verdadeiras calamidades, mas quando esses males se unem ao descuido e a negligência dos homens, estes poderiam, ao invés remediar. Problema ainda mais assustador são os outros gêneros de atentado relativos à vida nascente e a terminal, que são horrores novos, e que tende a perder, na consciência coletiva o caráter de crime e passam a ser direito, de pecado a virtude. Esses agravamentos se dão de forma mais radical quando são reconhecidos legítimos pelo Estado e executados gratuitamente por intermédio dos profissionais da saúde.
            Aqui um outro ponto que cabe a nós. Atuamos num ambiente católico, que se pauta pelos valores cristãos e pela defesa integral do ser humano. Como nos comportamos diante da vida humana? Como atendemos as pessoas que chegam até nós? Como lidamos com as situações-limite da existência? A Igreja ensina a respeitar e valorizar a vida humana, cuidar, amar. Mas quando nós, profissionais da saúde não nos preocupamos com a defesa da vida, mas nos rendemos a atentar contra a mesma, o que a Igreja fala sobre essa situação? Primeiro a Igreja afirma que a pesquisa científica e técnica com seres humanos deve ter em vista a sua dignidade e não podem, de forma alguma, atentar contra a dignidade das pessoas e à lei moral. Quando porém se infringem a dignidade e a lei moral, quando se provoca um aborto, ou eutanásia, ou distanásia (para citar os mais discutíveis por nós ultimamente) é, primeiro, um grande erro, um pecado grave.
            A posição da Igreja é firme contra aqueles que atentam contra a vida. A pessoa, automaticamente, se coloca “fora da comunidade eclesial”, a chamada excomunhão latae sententiae. No entanto, a Igreja é mãe e é misericórdia, apresenta Deus que é amor, acolhimento e cuidado. Por isso, recomenda aos profissionais da saúde que atentam contra a vida a proposta e o caminho da conversão. Retomar o caminho de Deus tendo em vista que a vida é propriedade de Deus, é ele quem nos presenteia com ela. A Igreja orienta ainda a olhar e amparar-se na Palavra de Deus, a escutar o que o Senhor diz, a ouvir seus ensinamentos e a fazer sua vontade no desejo de deixar de fazer o mal para retomar o caminho do bem. Por isso, a virtude do Temor de Deus é necessária, pois ensina a ser obediência ao Senhor que é o doador da vida, que é o Criador de todas as coisas. A Igreja insiste também no testemunho de vida da pessoa a partir da queda. O caminho de volta requer mais engajamento, compromisso. Assim, amparado pela Palavra de Deus, a pessoa deve retornar ao caminho do bem e testemunhar sempre a favor da vida favorecendo e ajudando a criar a cultura da vida.
            Finalmente, gostaria de partilhar com os senhores e as senhoras a minha última experiência. Tenho tido a oportunidade de me dedicar mais ao estudo da Teologia ultimamente. Sobretudo quero contribuir um pouco com aquilo que tenho visto sobre o tema do aborto. Como vimos, acima, a vida é dom de Deus. Ela pertence a ele. Por isso ela precisa ser respeitada e protegida de maneira absoluta desde a concepção. Desde o primeiro momento de sua existência, o ser humano deve ter reconhecido seus direitos como pessoa, inclusive o seu direito a nascer, a viver. Lembro do profeta Jeremias, “Antes mesmo de te formares no ventre materno eu te conheci; antes que saísse do seio, eu te consagrei” (Jr 1, 5). Assim, cada um de nós e todos nós, inclusive aqueles que estão para nascer, que foram fecundados hoje, somos pensados e amados por Deus. Além disso é preciso notar que o aborto é um atentado contra à lei moral porque o direito inalienável de toda pessoa inocente à vida constitui um elemento constitutivo da sociedade civil e da sua legislação. Por que? Porque “os direitos do homem não dependem nem dos indivíduos, nem dos pais, e também não representam uma concessão da sociedade e do Estado; pertencem Pa natureza humana e são inerentes à pessoa em razão do ato criador do qual esta se origina’[3].
            Sendo assim, devendo ser tratado como pessoa desde a concepção, o embrião deve ser defendido em sua integridade, cuidado, curado como qualquer outro ser humano. Nesse sentido, a vida humana vai da concepção até a morte natural e a Igreja defende essa verdade que é o desejo de Deus. De Deus viemos e para Ele voltaremos no momento mesmo em que Ele decidir ceifar a nossa vida.
            Distintos senhores e senhoras, agradeço a paciência em ouvir-me e refletir junto sobre a vida, dom de Deus. Obrigado!



[1] COELHO, Máario Marcelo. O que a Igreja ensina sobre... 3. ed. São Paulo: Canção Nova, 2008. p. 143.
[2] JOÃO PAULO II, Papa. Evangelium Vitae.
[3] Instrução Donum vitae, n. 3. In: TRESE, Leo J. A fé explicada. Tradução de Isabel Perez. 6. ed. São Paulo, 1995. p. 227.

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