Pular para o conteúdo principal

RELAÇÃO ENTRE TEOLOGIA E FILOSOFIA, FÉ E RAZÃO

   Iniciando um novo ano, ano especialmente dedicado à vivência e estudo da fé, tendo em vista que se está celebrando na Igreja o Ano da Fé, pensei oportuno essa reflexão sobre a teologia e a filosofia ou a fé e a razão, dado que são saberes diferentes, mas intrisecamente ligados. Eis o texto!


A teologia não é um saber absoluto, mas é o saber do Absoluto[1]. Nesse sentido, mantém estreita relação com as outras áreas do conhecimento, especialmente a filosofia no sentido de incorporar os diversos saberes filosóficos no seu próprio processo[2]. Sendo assim,

“A FÉ E RAZÃO (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de conhecer a ele, para que conhecendo-o e amando-o, possa chegar também à verdade plena de si próprio”[3].

               Assim, percebe-se que a relação entre filosofia e teologia, fé e razão se dão no mistério próprio da revelação de Deus ao gênero humano. Essa relação reflete a resposta divina à questão humana, ou seja, a mediação filosófica é intrínseca à fé vivida oferecendo a base natural dos conceitos sobrenaturais próprios da teologia[4].
               Se a fé é aquilo que o homem tem como crido e revelado por Deus e pode aderir ou não de forma livre, ativa e consciente essa Verdade revelada[5] isso mostra que a revelação pode ser assumida somente na perspectiva de uma determinada compreensão humana (antropológica) e é a filosofia quem dá base para tal entendimento.
               Desse modo, não há uma oposição entre fé e razão, mas complementaridade. Sendo assim, a relação entre fé e razão é, na verdade, uma harmonia fundamental de conhecimentos. De um lado, o conhecimento teológico que é transcendente, inexperenciável; de outro o conhecimento filosófico que além de auxiliar a compreensão das verdades de fé, admite como necessário o que a própria fé apresenta[6].
               Ambos os conhecimentos procuram a verdade. Este desejo impele estas duas ciências a buscar respostas para os anseios do homem. Isso porque se, de uma perspectiva a filosofia reflete sobre o sentido da vida, as perguntas sobre a origem e o fim da própria existência, já a teologia plenifica tudo isso, ela como que impele a razão a ir além de si mesma para vislumbrar o horizonte da fé, seu objeto/sujeito, o próprio Deus feito homem para a salvação do mundo.
               Essa conexão fé e razão já é vista, de certa maneira, desde o Novo Testamento[7] quando os cristão são convidados a “dar razão da própria esperança”[8]. Nisso consiste uma interessante relação da filosofia com a teologia, ou seja, é por meio da filosofia, do seu modo próprio de linguagem, que a fé pode ser transmitida ao mundo, enfrentando os mais variados discursos, afinal a filosofia confere base a um discurso racional, lógico e convincente para as verdades da fé.
               Também a patrística já vê a necessidade do testemunho da fé e do anúncio da mesma. Esse processo se dá pela apologia, defesa da fé das heresias e de qualquer crítica radical contra a fé. Isso é visto, sobretudo, em Justino quando mostra o que a revelação tem de concordância com o melhor da filosofia e em Orígenes quando defende a fé mediante os ataques de Celso na famosa obra “Contra Celso”.
               A escolástica também contribuiu na conexão entre fé e razão e talvez seja ela a maior expressão dessa relação. Com Agostinho, credo ut intelligam e com Tomás de Aquino quando este cristianiza o pensamento de Aristóteles indicando que acredita “poder tirar da filosofia deste pagão o que a razão está naturalmente em condições de fazer, no tocante ao conhecimento de Deus”[9].
               No entanto, a idade moderna reflete outra realidade. Se antes, na cristandade, a razão e a fé foram relacionadas, agora o império da razão não aceita Deus e sua revelação aos homens como justificável por paradigmas racionais. Isso se deve principalmente aos teóricos do iluminismo e da filosofia moderna que colocaram como critério de verdade aquilo que pode ser experimentado e provado empiricamente. A razão tornou-se totalmente autônoma.
               Já por volta dos séculos XIX e XX, a relação entre razão e fé foram colocadas sob nova perspectiva. Isso porque a história foi concebida como lugar da existência humana e como mediação do encontro de Deus com a humanidade. Várias escolas e novas contribuições, inclusive evangélicas, abordaram uma justificação racional da fé. Isso se deu no ambiente católico, sobretudo, com o Concílio Vaticano II.
               É desse cenário histórico que brota a discussão atual sobre a fé e a razão, a teologia e a ciência. Hoje há a concepção de uma mediação antropológica da revelação. É o próprio Cristo que revela o homem a ele mesmo[10]. Por isso, a filosofia é propriamente a companheira da teologia, porque valida seu discurso, coloca questões e auxilia na compreensão da fé da Igreja. Além disso, o discurso religioso e a adequação da teologia enquanto ciência pautam-se sobremaneira sobre a capacidade racional de lidar com seu objeto/sujeito e inseri-lo no universo do conhecimento, o próprio Verbo encarnado.


[1] BOFF, Clodovis. Teoria do método teológico. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 358.
[2] Ibid., p. 367-368.
[3] JOÃO PAULO II, Fides et ratio. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1998.  p. 5.
[4] BOFF, Clodovis, op.cit., 1999, p. 375.
[5] LEMAITRÊ, Nicole; QUINSON, marie-Thérése; SOT, Véronique. Dicionário cultural do cristianismo. Tradução de Gilmar Saint’Clair Ribeiro et. al. São Paulo, 199. p. 133-134.
[6] JOÃO PAULO II, op.cit., n. 42. p. 6.
[7] Aqui tem início breve contextualização histórica elaborada a partir de: LATOURELLE, René; FISICHELLA, Rino. Dicionário de teologia fundamental. Tradução de Luiz João Baraúna. Aparecida: Editora Santuário; Petrópolis: Vozes, 1994. p. 729-732.
[8] Cf. 1Pd 3, 15.
[9] LATOURELLE, René, op.cit., 1994, p. 730.
[10] Cf. Gaudium et Spes, n. 22. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

RESUMO: Introdução à eclesiologia

11.        INTRODUÇÃO O trabalho tem como objetivo resumir o livro “Introdução à Eclesiologia” de Salvador Pié-Ninot. Evidentemente não é uma tarefa simples, dado a complexidade do tema e, ao mesmo tempo, as discussões polêmicas que o mesmo está envolvido. Por exemplo: Jesus fundou a Igreja ou ela simplesmente foi aquilo que seus seguidores conseguiram oferecer? Essa e outras questões polêmicas perpassam na mente de qualquer estudante de teologia. Por isso, o resumo aqui apresentado fez questão de ser fiel ao autor nas observações, nos apontamentos e, ao mesmo tempo, na disposição dos capítulos que foram lidos e analisados. Para isso, no desenvolvimento está elaboraram-se tópicos que correspondem aos capítulos em número de 6 mais a conclusão. Assim, fala-se no estudo da história do Tratado de Eclesiologia, dos conceitos fundamentais relacionados à Igreja, de Jesus à Igreja, da Igreja primitiva e edificada pelos sacramentos, das dimensões da Igreja, da missão da Igreja e, final

ESSÊNCIA, PESSOA E SUBSTÂNCIA

I – INTRODUÇÃO             O presente trabalho apresenta uma breve definição das palavras ESSÊNCIA, PESSOA e SUBSTÂNCIA. A ordem de apresentação foi estabelecida a partir da ordem alfabética. Ao longo do texto notar-se-á que se buscou apresentar a origem do termo pesquisado, bem como a sua evolução e o que ele significa no campo teológico, mais especificamente em relação à Trindade. II – ESSÊNCIA, PESSOA, SUBSTÂNCIA             O problema inicial que permeia a definição de essência, pessoa e substância começa pelo fato de os gregos falarem de uma essência e três substâncias e os latinos de uma substância e três pessoas [1] . Sendo assim, corre-se o risco de confundir os termos e seus significados. Por isso, estudou-se apenas a concepção latina sem fazer as devidas comparações com a grega. a)       ESSÊNCIA Por esse termo é entendido, em geral, a resposta à pergunta “o quê?” [2] , por exemplo, na pergunta: ‘o que é o homem?’. A resposta, em geral, exprime a essên

A IGREJA ÍCONE DA TRINDADE (Bruno Forte)

RESUMO: A IGREJA ÍCONE DA TRINDADE (Bruno Forte)   1.       INTRODUÇÃO   O presente trabalho é um resumo da obra de Bruno Forte “A Igreja ícone da Trindade”. A leitura foi realizada de forma atenta e interessada tendo em vista a importância do tema. Divindade em três grandes partes, o livro apresenta a “ ECCLESIA DE TRINITATE – de onde vem a Igreja?”, a “ ECCLESIA INTER TEMPORA – o que é a Igreja? A forma trinitária da Igreja” e a “ ECCLESIA VIATORUM – para onde vai a Igreja?”. Dessa maneira, a apresentação desse resumo seguiu o mesmo esquema apresentado pelo autor. No entanto, no livro ele faz divisão de capítulos ao apresentar cada uma das três partes. Aqui, no entanto, pensou-se em apresentar em um único texto corrido a reflexão de Bruno Forte no intuito de elaborar um pensamento único que faça a conexão dos assuntos entre si, dado que todos estão inter-relacionados.   2.       A IGREJA ÍCONE DA TRINDADE   Bruno Forte escreve este