Texto produzido para a disciplina de Sociologia da Religião, mas que pode ser útil para a compreensão da fé popular no Brasil, especialmente.
1 INTRODUÇÃO
Esse breve texto procura apresentar as principais características do denominado catolicismo popular. Ele se denomina por ser um movimento extra-oficial da Igreja Católica dirigido por leigos e por se manifestar nas camadas mais pobres e sofridas da sociedade. É uma espiritualidade totalmente voltada para a figura do santo e de Jesus sofredor. A esses o povo se identifica na caminhada cotidiana e na vida eclesial. A Igreja Católica, a partir da Conferência de Aparecida lança um olhar de acolhida e de valorização dessa expressão religiosa. É a partir dessa ótica que se busca analisar esse fenômeno católico.
2 CATOLICISMO POPULAR
2.1 ORIGEM
O catolicismo popular tem sua origem no catolicismo medieval vindo de Portugal quando a Igreja ainda se situava na sociedade da Cristandade . No Brasil, iniciou-se com a chegada dos portugueses à esta terra, inicialmente denominada Terra de Santa Cruz, associada ao regime denominado padroado .
O catolicismo popular tem feição predominantemente leiga dado que é um movimento não oficial do cristianismo católico. Além disso, o caráter leigo se justifica pelo fato de que foi um modo de expressar a fé tipicamente rural onde não havia o sacerdote para realizar os atos de devoção do povo.
Portanto, a partir disso, percebe-se, que há uma diferenciação entre catolicismo oficial (catolicismo da Igreja católica enquanto assumido pelos ministros ordenados, padres, bispos, papa – ou da elite citadina) e catolicismo popular (oriundo das classes menos favorecidas, pobres, camponeses e desenvolvido no meio rural) . Conforme Santos ,
“Desta forma, ao longo da História, formou-se no Brasil dois catolicismos diferentes: um oficial, clerical e ortodoxo; o outro extra oficial popular e supersticioso. Ambos possuíam uma estrutura própria, sua razão de ser e sua lógica”.
Os pobres, no entanto, não vendo expressão de sua fé no catolicismo oficial começam uma nova expressão de fé, o catolicismo popular, marcado, especialmente, pelas devoções dos santos e a crença na sua proteção e intercessão poderosa junto de Deus. Essas manifestações segundo Parker se dão da seguinte maneira:
“[...] manifestações populares que exprimem a seu modo, em forma particular e espontânea, as necessidades, as angústias, as esperanças e os anseios que não encontram respostas adequadas na religião oficial ou expressões religiosas das elites e das classes dominantes”.
Essas são atitudes marcantes do catolicismo popular, ou seja, a forma espontânea e particular de interpretar e viver a fé de modo simples e do jeito mesmo do povo, da sua cultura e realidade.
2.2 CARACTERÍSTICAS
O catolicismo popular é uma expressão religiosa vivida pelos mais simples da sociedade. Em sua maioria pobres, camponeses, escravos, mestiços e alguns índios destribalizados . Dentre suas principais características está o protagonismo leigo no sentido de movimentar a comunidade em torno de sua crença e na coordenação dos momentos de oração, denominados “rezas”.
Além disso, há um caráter marcadamente devocional, não sacramental como no catolicismo oficial. Isso motivado, inclusive pela ausência do padre nas celebrações e devoções populares. É uma forma de expressar a fé mais realista, no sentido de estar mais vinculada à vida do povo, ao seu dia-a-dia, além de expressar sua forma de viver, de pensar e de se relacionar com o sagrado.
O catolicismo popular insiste na visão do divino, o santo particularmente, como aquele que protege e, portanto, que pode resolver todos os problemas de ordem prática. Isso é perceptível pela realização de novenas, promessas e festas aos santos de devoção. Com isso, aparece uma nova característica do catolicismo popular: a devoção ao santo.
O santo é um dos elementos fundamentais dessa forma de manifestar a religiosidade. Tudo parece girar em torno dele. Ele é objeto de devoção pessoal, familiar e comunitário. A vida de cada pessoa, de sua família e ambiente social parece estar relacionado intimamente com a capacidade que o santo tem de interceder a Deus por cada um e por todos.
Nesse sentido, tem lugar os chamados oratórios, pequenos ambientes em casa, geralmente em formato de capelas, onde ficam os santos de devoção. É um verdadeiro altar familiar onde se realizam as novenas, rezas do terço e oração em família. O mesmo acontece em nível de comunidade na capela. Ela é lugar de encontro dos fiéis em torno ao santo padroeiro ou protetor. A comunidade, sob a liderança de um leigo, se reúne para manifestar a sua devoção seja em novenas, festas do padroeiro, rezas do terço, novena de natal e Semana Santa .
Junto a essas “rezas” costuma-se realizar alguma pequena festa de “comes e bebes” onde cada família contribui com quitutes, doces, salgados, e realizam uma grande partilha, muitas vezes com danças típicas da região, como é o caso das quadrilhas e festas juninas.
No Brasil é muito presente essa religiosidade e esse jeito de viver e expressar a fé. Exemplos disso são as “folias de reis”, celebrações da Semana Santa, Mês de Maria com as coroações, devoções ao Sagrado Coração de Jesus, aos santos Antônio, São João e São Pedro, “festas do divino”, devoção ao Senhor Bom Jesus, Nossa Senhora Aparecida, novenas de Natal, festa de Nossa Senhora do Rosário, “congados”, além das romaria aos grandes santuários que são manifestações dessa fé popular como é o caso – no Brasil - de Aparecida, Trindade (Goiás), Padre Cícero (Juazeiro do Norte – PE), dentre outros.
Existem também as promessas realizadas em nome do santo para alcançar alguma graça. Geralmente nestes santuários de grande movimentação religiosa existem as “Salas das promessas” onde se guardam objetos levados pelos fiéis para agradecer ao santo. Também chamados de “ex-votos”, por um voto (graça) alcançado .
2.3 VISÃO DO MUNDO, DO HOMEM E DE DEUS
O catolicismo popular caracteriza-se principalmente pela fé do povo, portanto não existe nele uma teologia elaborada, com fundamentos racionais da fé. Ao contrário, existe uma fé ardente e viva, característica dos mais pobres e desprezados que se identificam com o sofrimento do Senhor Bom Jesus, dos santos e mártires da Igreja.
Por isso, sua visão do mundo, do homem e de Deus é diferenciada em referência ao catolicismo oficial. A fé popular não é uma fé pensada e sistematizada, mas fé vivida. Olha o mundo como criação de Deus, mas como lugar do sofrimento, das dificuldades e dores. Mas olha com esperança de quem um dia pode morar junto de Deus nos céus, apesar de a morte ser um fenômeno de muito mito, inclusive de uma visão negativa, enquanto pagamento das dívidas de pecados cometidos, purgatório, inferno.
O mundo é o lugar do pecado e da opressão, da escravidão. Lugar que Deus criou, mas que também fez sofrer seu Filho Jesus Cristo. Inclusive o catolicismo popular se identifica muito mais com a figura do Cristo sofredor do que do Ressuscitado. O sofrimento diz mais ao pobre, à sua história de vida.
A visão do homem é aquela de criado à imagem e semelhança de Deus e, por isso, Deus está sempre perto do ser humano. Concebe o homem e a mulher como convocados a pertencer a uma mesma família, a família de Deus, enquanto Igreja no seu jeito mais simples de ser. Esses homens e mulheres são chamados, no Espírito, a se tornarem filhos e filhas de Deus pela remissão dos pecados, pela confissão, pelas penitências, muito comuns nessa forma de catolicismo.
Já na referência a Deus percebe-se muito mais uma ligação com o santo e com o Cristo sofredor, como foi dito. Deus é aquele Ser distante da realidade deles no sentido de que o santo é que tem maior convivência e força de contato com Deus; tanto é que o santo é o protetor, o intercessor, aquele que leva tudo de forma mais fácil e rápida a Deus. Portanto, a figura de Deus é distante, onipotente e superior, mas acessível e muito próxima na figura dos santos e de Jesus sofredor.
3 O OLHAR DA IGREJA
A reação da Igreja a esse fenômeno religioso denominado catolicismo popular é, especialmente, com a Conferência de Aparecida, de acolhida e de valorização, dado que é o que ainda sustenta a fé de muitas pessoas, além de manifestar a cultura, o jeito de ser e de ver Deus do povo simples, pobre e, muitas vezes, excluído.
O Documento de Aparecida, resultado desse evento de colegialidade dos Bispos da América Latina e do Caribe, realizado em Aparecida – SP em 2007, trata da religiosidade popular especialmente nos parágrafos 258-265. A Igreja oficial, a partir do Concílio Vaticano II , procura apoiar todas as iniciativas de difundir e manter a fé entre as pessoas, particularmente as mais simples, preferidas e escolhidas por Jesus.
Segundo o Documento de Aparecida (DA), a religiosidade popular é o “precioso tesouro da Igreja Católica” , porque reflete uma sede de Deus que somente os pobres e mais simples, excluídos podem conhecer. É um catolicismo popular extremamente inculturado e próprio do povo celebrar a fé. É também a súplica sincera e confiante de quem reconhece que sozinho nada pode, mas que necessita da graça divina, do amor de Deus revelado nos santos, em Jesus Cristo que se fez homem pobre também.
O catolicismo popular é, segundo o olhar de Aparecida, “imprescindível ponto de partida para conseguir que a fé do povo amadureça e se faça mais fecunda” . Expressa, assim, um sentido da transcendência que se revela na imanência mesma do mundo e na capacidade espontânea de se apoiar em Deus.
O catolicismo popular é, enfim, segundo o DA, a manifestação do imenso amor que Deus tem por seu povo e que recorda a esse povo a sua dignidade, especialmente na pessoa de Maria. Ela, Maria, vê refletida a mensagem especial do Evangelho. Como afirma o documento:
“Nossa mãe querida, desde o santuário de Guadalupe, faz sentir a seus filhos menores que eles estão na dobra de seu manto. Agora, desde Aparecida, convida-os a lançar as redes ao mundo, para tirar do anonimato aqueles que estão submersos no esquecimento e aproxima-los da luz da fé. Ela, reunindo os filhos, integra nossos povos ao redor de Jesus Cristo” .
Desde o que acusa esse documento e pelas características do catolicismo popular, nota-se que possui uma dimensão social de recuperação e inserção do pobre, do sofrido na sociedade, ou numa sociedade, mesmo que seja a da sua comunidade, do seu bairro. O catolicismo popular procura reintegrar o ser humano, valorizá-lo a partir da ótica de Deus e da comunidade a qual pertence.
Nesse sentido, pode-se afirmar que nos inícios, a religiosidade popular significou uma submissão do povo aos poderes, às elites . No entanto, ultimamente, principalmente com os movimentos libertadores da América Latina e do Brasil, os pobres conseguiram sentir-se mais inseridos e responsáveis pela sociedade em que vivem. Ou seja, a força das massas populares, mesmo que caladas, ainda continuam com grande eco “em termos de consciência e de compromisso político” .
4 CONCLUSÃO
Estudar o catolicismo popular é sempre desafiador e atraente.
Desafiador, porque é pesquisar o que mais emociona e toca a fé, ou seja, sua expressão mais simples e humilde, sua manifestação nos lugares onde a fé é simplesmente fé, onde não há elaboração teológica sistemática, mas crença, vivência do que se acredita.
Atraente porque é uma religiosidade cheia de mistérios, de tradições, de jeitos próprios de ver Deus e os santos protetores. É, enfim, um modo de viver desapegado das grandes celebrações, mas realizada na simplicidade de um pequeno povo, comunidade, círculo de pessoas, famílias que acreditam em um Deus que se faz próximo a elas.
O catolicismo popular traz identidade para um povo, consegue fazê-lo perceber seu lugar e sua função no mundo. Por mais simples e sem grande aparência que seja, existe uma ideia de comunidade, de objetivos comuns, de fraternidade, solidariedade e justiça – mesmo que na mais simples compreensão. Isso pode e deve transformar a vida e a realidade.
5 REFERÊNCIAS
CELAM. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V conferência geral do episcopado latino-americano. Brasília: Edições CNBB; São Paulo: Paulinas; Paulus, 2007.
SANTOS, Miguel Archângelo Nogueira. Trindade de Goiás: uma cidade santuário, conjunturas de um fenômeno religioso no Centro-Oeste brasileiro. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1992. p. 240.
PARKER, Cristián: Religião popular e modernização capitalista: outra lógica na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 55-56.
REVISTA ECLESIÁSTICA BRASILEIRA. BOFF, Clodovis. Teologia da libertação e volta ao fundamento. 2007. n. 268. p. 1016.
Disponível em: <http://www.clfc.puc-rio.br/pdf/fc14.pdf> Acesso em 10 de maio 2012. p. 3.
Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_padroado3.htm> Acesso em 10 maio de 2012.
Disponível em :<http://tede.biblioteca.ucg.br/tde_arquivos/8/TDE-2006-08-09T090714Z-135/Publico/Karine%20Monteiro%20da%20Silva.pdf> Acesso em 10 de maio de 2012. p. 20s.
Disponível em: <http://www.universocatolico.com.br/index.php?/o-catolicismo-popular-no-brasil.html> Acesso em 10 de maio de 2012.
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