1.
A
JUSTIÇA NO SEGUNDO MILÊNIO DA IGREJA
p.
189 – “A rica tradição da Bíblia, dos Padres da Igreja e dos doutores como
Santo Tomás, sobre a justiça como um grande compromisso e dever do cristão e da
pessoa humana, foi se reduzindo gradativamente no segundo milênio até
desaparecer por volta da segunda metade. A época moderna assombrou esta grande
dimensão da vida cristã e humana, pois colocou o bem individual como prioridade
da vida”.
p.
190 – “Perdeu-se também a convicção, bem presente até São Tomás, de que cada
ação econômica, tendo como fim em si a acumulação e o enriquecimento, é uma
atitude imoral cristã”.
“Nós não falamos que Tomás seja o Evangelho,
nem que a vida econômica conhecida por ele fosse a nossa. Mas aquilo que nos
interessa é a coerência e a constância da tradição cristã dos textos do NT até
os Padres e São Tomás: em todo este prazo – cerca de 1200 anos, e todo o espaço
geográfico e cultural, onde o Evangelho foi transmitido, a mesma visão moral do
relacionamento entre a pessoa e as riquezas ficou constante, apesar das
condições culturais, estruturais, econômicas muito diferentes entre elas”.
p.
191 – A realidade católica do segundo milênio [...] gerou [..] uma consciência
que considerava a miséria não como produto da história humana, mas algo
produzido pela fatalidade e pelo destino”.
“Afirmar que a pobreza do pobre (sua morte) é
natural ou vontade de Deus, ou pretender a reconciliação antes de odiar o mundo
e fazer justiça, são propostas de uma teologia da demonização”, declara
Dussel.
p.
192 – “Esta concepção de pobreza absolveu o homem e acusou o destino ou até
Deus, gerando uma ética de resignação, pois não se podia mudar o destino ou ir
contra Deus. Como consequência, temos o desaparecimento do compromisso pela
justiça [...]”.
“A
doutrina da pobreza causada pela natureza levou a dois caminhos de ação para
enfrentar a questão da miséria: os pobres deviam aceitar a própria situação
como pobreza e se resignar, enquanto os ricos eram incentivados a se
comprometer [...]”.
“[...]
o dever da justiça [...] tornou-se apenas um dever de esmoa”.
p.
192-193 - “A Igreja não ficou despreocupada com os pobres [...], porém a única
preocupação ficou somente em nível de esmola para que os pobres pudessem
aceitar a situação de miséria. [...]
Para fazer aceitar a amarga pobreza sem revolta, a Igreja criou a
espiritualidade do sofrimento, ou seja, uma espiritualidade do sacrifício que
salvava a ala e garantia a alegria do paraíso”.
p.
193 – “Este tipo de espiritualidade foi também um fruto da Teologia da Alma que tinha como pilar a concepção de uma vida
cristã empenhada somente em cuidar da alma. [...] E para realizar isso,
precisava desprezar o corpo, pois era considerado a fonte dos males”.
p.
194 – “Como consequência e fruto desta concepção cristã, se gerou uma
espiritualidade da purificação do corpo, tendo como ideal a eliminação do corpo
para poder libertar a alma e conduzi-la assim à vida eterna. A época medieval
elaborou vários métodos de flagelação corporais que foram usados ao longo do
segundo milênio”.
“O
imaginário cristão era sofrer para se sentir parte da dor de Jesus Cristo”.
“A
espiritualidade do sofrimento alimentava a doutrina da resignação, inibindo
qualquer tipo de revolta porque o pobre não conseguia perceber a injustiça
social, pois tudo era visto como motivo de redenção do corpo para poder
alcançar o desejado paraíso depois da morte”.
p.
195 – “A riqueza, na linha da atual Teologia
da Prosperidade, elaborada sobretudo pelo pentecostalismo, era vista não
como fruto de um processo de capitalização, mas simplesmente como algo
provocado pelo destino. Diante deste destino de prosperidade, a única maneira
de purificar o corpo do rico e ganhar a salvação da alma era dar esmola aos
pobres para aliviar um pouco o sofrimento deles”.
“A
vida eterna dos ricos era conquistada, então, por meio da esmola que ofereciam
aos pobres”.
p.
196 – “A espiritualidade da esmola produziu também a imagem do pire como ‘o
coitadinho’, o sem sorte, o destinado, o sofrido querido por Deus. Escondendo
completamente que o pobre era portador de direitos e que no coração do
miserável havia um anseio profundo de justiça e de busca do bem comum”.
“Um
dos meios para aliviar a pobreza foi o instrumento da caridade privada [...]”.
“[...]
a caridade privada leva ao assistencialismo, que não é libertar os pobres do
peso da miséria, mas, por meio de programas de assistência, é ajuda-los a
suportar a amargura da situação”.
p.
197 – “[...] a verdadeira caridade é sempre comunitária e nunca poder ser
privatizada. Enquanto a caridade for privada, nunca poderá mudar de situação,
mas estará sempre a serviço do ‘status quo’, ou seja, do sistema atual de
opressão e empobrecimento dos pobres”.
p.
197-198 – “A religião se colocou a serviço do sistema imposto, fazendo o pobre
engolir a miséria amarga com a promessa de que amanhã tornar-se-ia dignidade
humana, mas isso somente depois da morte”.
p.
198 - “Diante disso, Karl Marx fez dura crítica à religião como ópio dos povos,
pois, ao invés de acordar as populações na busca da justiça social, tornou-se
um poderoso sonífero religioso para adormecer os povos oprimidos e para
acordá-los somente depois da morte”.
p.
199 – “A modernidade inventou o homem econômico, ou seja, a pessoa não mais
preocupada principalmente em trabalhar para a melhora da vida, mas para
acumular capital. [...] O homem econômico teve como objetivo não a qualidade de
vida humana, mas aumentar sempre mais a vantagem econômica e, por isso,
tornou-se proprietário dos meios de produção e sujeito do processo que, quanto
mais aumenta a produção, tanto ais consegue maximizar o lucro”.
p.
200 – “A atividade econômica, segundo Locke, não tem mais a prioridade de se
preocupar com o bem comum, como exigiu a concepção bíblica, patrística e
tomista, mas o seu objetivo fundamental se tornou a liberdade do indivíduo na
busca da própria vantagem. Está aqui o começo da era do liberalismo. Com Locke
nasce o conceito de modero de propriedade que é o domínio dos bens da terra por
parte do indivíduo”.
p.
202 – “Esta virada do bem comum par ao individual, por meio da mudança da
concepção da propriedade trouxe consequências tristes para a justiça social,
pois se absolutizou o indivíduo á custa do bem comum”.
p.
203 – “[...] o capitalismo liberal renega o dever de justiça ou o dever de
esmola para os pobres, porque o pobre é assim, não por natureza ou destino, mas
por causa da própria negligência”.
p.
204 – “O capitalismo liberal, por meio da consolidação da sociedade industrial,
sobretudo no início do século XIX, gerou forte aumento de riqueza. Como
consequência houve o enorme enriquecimento dos empresários [...]. Para a classe
operária, os efeitos foram bem contrários àqueles previstos pelo sistema
liberal, pois a maximização da vantagem pessoal não maximizou o bem de todos,
mas criou um processo de empobrecimento sobretudo dos operários, a maior classe
social gerada pelo sistema industrial”.
“Contra
esse sistema liberal se fortaleceu o socialismo [...]. Foram, verdadeiramente,
os líderes do socialismo que perceberam as causas da miséria, sobretudo do
salário injusto, e começaram a denunciar o sistema liberal como opressor e
injusto, revelando assim que a pobreza não era uma questão de destino, mas de
injustiça social”.
p.
205 – “Rousseau [...] declara que a origem da desigualdade são a propriedade e
as leis, porque no estado natural não existia a desigualdade [...]. Esta
desigualdade, admitida pelo direito positivo, é, porém, contrária ao direito
natural [...]”.
p.
206 – “Quantos assassinatos guerras,
homicídios, quantas misérias e horror teria poupado ao gênero humano aquele
que, erradicando as estacas e aterrando os fossos, tivesse gritado aos seus
próprios iguais: cuidado em ouvir este impostor; são perdidos, se esquecem que
os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém".
p.
207 – “A preocupação central de Mark é a miséria que afeta e massacra o
proletariado industrial [...]. A análise marxista da realidade indaga as causas
da injustiça social e deslumbra saídas a partir dos oprimidos”.
“Marx
questiona fortemente a economia liberal por meio do seu famoso livro O Capital, onde apresenta que a
transformação do dinheiro em capital acaba transformando a mão-de-obra e
mercadoria, ou seja, explorando o operário. [...] A economia liberal gerou duas
classes: aqueles que possuem o dinheiro e a mercadoria e aqueles que ficam
somente com a própria força de trabalho”.
p.
208 – “[...] condição do capital é o
trabalho assalariado”.
“A
justiça, segundo Marx é um salário digno ao proletariado, mas sobretudo a
possibilidade de a classe operária se organizar para defender os próprios
direitos”.
p.
209 – “No século XIX surgiu uma geração de ‘católicos sociais’ [...] eu
incentivou a hierarquia da Igreja Católica a fazer seu o clamor dos operários
que estavam sendo explorados pelo mundo industrial”.
“Um
dos maiores pioneiros doi o bispo alemão dom Emmanuel Von Ketteler [...]”.
p.
210 – “A contribuição destes católicos sociais no processo de amadurecimento de
uma consciência social da Igreja foi: a denúncia da ‘miséria imerecida’ dos
proletários [...]”.
p.
210-211 - “Partir da França, no final do século XVIII, o movimento radical que
irá mudar em todos os sentidos a Europa: a Revolução Francesa (1789-1799) [...].
A revolução lançou a base de uma nova sociedade, fazendo da igualdade o
princípio e o ideal da nova realidade no lugar do privilégio do velho sistema.
[...] No século XX houve a importantíssima e inesquecível Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948, proclamada pela ONU”.
p.
211 – “Estas declarações sobre os direitos humanos deram uma contribuição muito
importante [...] ao introduzir a igualdade como pilar da construção da nova
sociedade, afirmando que todos os cidadãos são iguais e têm direitos às mesmas
dignidades, acabando com os privilégios da classe nobre. O princípio da
liberdade, outro pilar da modernidade, acabava com toda tentativa de escravizar
e oprimir o outro, mas dava, porém, plena liberdade à iniciativa econômica e de
comércio, tornando-se o grande princípio liberal do capitalismo industrial: a
livre iniciativa de mercado”.
p.
211-212 – “A Revolução introduziu a máquina no lugar do homem, dando origem à
indústria e ao capitalismo moderno, mas criou também um novo regime de
privilégios e de arbítrio nas mãos da classe burguesa, formada pelos
empresários ou proprietários das máquinas. [...] o mito da liberdade foi o
braço direito do capitalismo industrial”.
p.
212 – “A justiça social não foi prioridade da época moderna, pois o dever de justiça
se tornou apenas uma esmola do rio para aliviar o sofrimento dos pobres”.
p.
213 – “A época pós-moderna ajudou a compreender que a pobreza não era uma
questão de destino ou vontade de Deus, mas que era causada pelos sistemas
opressores, como os operários do mundo industrial [...]. O bem comum voltou a
ser prioridade, no pensamento da pós-modernidade, para poder combater a
injustiça social e para assegurar os direitos humanos que garantem as condições
básicas da dignidade humana”.
2.
A
JUSTIÇA SEGUNDO A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
p.
214 – “Foi o clamor dos assalariados industriais, dos operários, que provocou o
magistério da Igreja a assumir a questão social, marcada pela injustiça e pela
opressão, como parte importante da vida da Igreja”.
“A
encíclica Rerum Novarum [...]
inaugurou a Doutrina Social da Igreja. Com isso, o Magistério da Igreja assumiu
a questão social como algo importante para a reflexão teológica e para a ação
da Igreja”.
p.
215 – “Leão XIII, o primeiro papa da Doutrina Social da Igreja (DSI), declara:
‘Mais ainda: é para as classes
desfavorecidas que o coração de Deus parece inclinar-se’ (RN 15)”.
“O
que deu origem à doutrina social da Igreja foi [...] a tomada de consciência,
por parte do Magistério eclesiástico, da ‘miséria imerecida’ do proletariado
industrial, primeiramente, e depois do proletariado internacional”.
p.
216 – “As intuições de Leão XIII sobre a questão operária são:
1.
A miséria dos operários é imerecida.
2.
O operário é usado como instrumento de lucro e o salário é injusto.
3.
Os direitos do trabalhador: um salário justo para cobrir as necessidades
elementares do trabalhador, e que todos, também os trabalhadores, possam chegar
a ser proprietários; dignidade do trabalho, direito de associação.
4.
A causa maior é o capitalismo liberal [...].
5.
Como consequência desta injustiça há conflito entre as duas classes: os patrões
e os operários”.
p.
217 – “Leão XIII revela que há uma injustiça social, atingindo os operários, e
denuncia a concentração do poder econômico em poucas mãos, originando a
multidão infinita dos proletários”.
“A
encíclica declara o uso comum dos bens criados ou seja, o destino universal dos
bens que pertencem em comum e indistintamente a todo gênero humano”.
p.
218 – “Recordem-se o rico e o patrão de
que explorar a pobreza e a miséria, e especular com a indigência são coisas
igualmente reprovadas pelas leis divinas e humanas; que cometeria um crime de
clamar vingança ao céu quem defraudasse a qualquer pessoa no preço dos seus
labores [...]”.
p.
219 – “Leão XIII ressalta algumas orientações éticas:
*O
trabalho não é uma mercadoria e a determinação do seu valor não pode ser
entregue às forças livres do mercado.
*Existe
uma justiça anterior e superior àquela meramente legal. Esta justiça natural ou
superior será chamada, mais adiante, justiça social pelo Papa Pio XI.
*Não
se trata de abolir a propriedade privada, mas de estendê-la, fazendo de cada
homem um proprietário e alcançando, assim, a ‘desproletarização’ dos
assalariados”.
“A
solução do conflito de classe, segundo a RN, é aproximar as classes sociais por
meio das associações de operários e patrões para conseguir um salário justo e
para que também o trabalhador se torne proprietário”.
p.
219-220 - “A encíclica ‘Quadragesimo Anno’,
de Pio XI celebrando os quarenta anos da RN, enfrenta as seguintes questões
sociais: a situação de empobrecimento da classe operária; o capitalismo liberal
que coloca nas mãos de poucos a riqueza, o conflito entre as classes e o
socialismo. [...] Quadragesimo Anno quer
acabar com o individualismo egoísta liberal, para alcançar a superação das
tensões entre as classes sociais e proteger os indivíduos do autoritarismo
estatal que contém o comunismo”.
p.
220 – “Segundo o pensamento de Pio XI, o salário é condição para que o operário
possa transformar-se em proprietário. Por isso, deve ser um salário justo, e
não de sobrevivência. O papa introduz também o salário familiar, ou seja, a
remuneração do trabalho tem de se ajustar também segundo as responsabilidades
familiares”.
“A
justiça social é um princípio regulador de uma justa distribuição. É sinônimo
de Bem Comum”.
“[...]
a justiça social e a caridade social são os dois princípios mais elevados e
nobres para regular o poder econômico descontrolado”.
p.
220-221 - “Com Pio XI aparece, pela primeira vez e uma encíclica, a expressão
justiça social [...]. Justiça social é a justiça distributiva para o papa”.
p.
221 – “Pio XII foi o primeiro a usar a expressão ‘Doutrina Social da Igreja’ em
sua rádio-mensagem de Pentecostes de 1941. [...] Pio XII estabeleceu o direito
natural de todos os homens de fazer uso dos bens materiais para satisfazer as
necessidades. [...] o papa reconhece que o direito de fazer uso dos bens comuns
é anterior ao direito de possuir uma propriedade privada e é, então, natural”.
p.
222 – “João XXIII foi o primeiro Papa do século XX que assumiu com alegria os
valores próprios do mundo moderno. O ensino social de João XXIII está contido
em duas encíclicas, Mater et Magistra (1961),
que se refere à sociedade econômica, e Pacem
in Terris (1963) que é orientada para a sociedade política nacional e
internacional”.
“A
encíclica Mater et Magistra [...] exige que o Estado possa ‘animar,
estimular, coordenar, suprir e integrar’, sempre dentro do espírito do
princípio de subsidiariedade e considerando todas as exigências do bem comum”.
p.
223 – “A encíclica Pacem in Terris foi publicada em plena guerra fria [...] Por
isso, trata das condições para uma paz duradoura, declarando que a paz entre as
nações está fundada na verdade, na justiça, no amor e na liberdade, valores que
são constitutivos de uma ordem moral”.
p.
224 – “Por meio de João XXIII, o tema dos direitos humanos começa a atrair a
atenção do magistério social da Igreja”.
“A
encíclica indica o trilho da justiça social, declarando que a justiça social se
constrói tendo os direitos humanos como base da convivência humana e que a paz
é filha dos direitos humanos”.
p.
225 – “João XXIII estrutura toda a sua concepção da comunidade em torno de dois
eixos: a autoridade e o bem comum”.
p.
226 – “o apelo final da encíclica revela como a justiça social acontece por
meio da restauração das relações de convivência humana na base da verdade,
justiça, amor e liberdade e seguindo o trilho dos direitos humanos”.
p.
226-227 - “Algumas conclusões importantes sobre este processo de reconciliação
entre a Igreja e o mundo, culminando com o pontificado de João XXIII [...]:
*Houve
uma conversão interior da Igreja [...].
*Houve
uma verdadeira mutação cultural gerando um crescente compromisso social da
parte de muitos setores católicos em todo o mundo”.
p.
227 – “João XXIII surpreendeu a Igreja e a humanidade quando no dia 25 de
janeiro de 1959 manifestou o seu propósito de convocar um Concílio Ecumênico. A
sua obra condensada numa só palavra é ‘aggiornamento’ (colocar em dia a Igreja)
[...]”.
p.
228 – “Antes do Concílio Vaticano II, a Igreja esperava o mundo como se fosse o
filho pródigo da parábola evangélica”.
“[...]
o Papa destaca que a Igreja sente-se obrigada a ir ao encontro das necessidades
e exigências dos povos”.
p.
228-229 – “A Constituição Pastoral Gaudium
et Spes é o documento mais importante do Concílio sobre a justiça social.
[...] a Igreja tem de sair de si mesma para:
a)
ir ao encontro da pessoa sofrida e alegre de hoje e assumir toda a situação
histórica e humana da pessoa humana [...];
b)
ir ao encontro do mundo de hoje [...];
c)
ir ao encontro da humanidade de hoje [...]”.
p.
229-232 – “Os pontos principais da Gaudium
et Spes sobre a justiça social
1.
Uma nova concepção do aspecto temporal [...]. A Gaudium et Spes 36 reconhece a autonomia das realidades temporais
[...]. O lugar do mundo é o lugar da manifestação do Reino de Deus por meio da
construção de uma sociedade justa e solidária. [...] Hoje a Igreja é uma
autoridade profética e não mais política ou com poder de jurisdição. A Igreja
faz-se presente no mundo para servi-lo, com o objetivo de transformar o mundo
segundo os valores do Evangelho a partir do potencial positivo que já existe na
realidade terrestre. O objetivo não é mais convertê-lo à Igreja, pois o novo
horizonte é o Reino de Deus, e não mais a Igreja.
2.
A dignidade da pessoa como centralidade. [...] A pessoa necessita absolutamente
da vida social, mas ela é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as
instituições sociais.
3.
A vida econômico-social tem de estar a serviço da dignidade da pessoa e do bem
comum, respeitando e promovendo a dignidade e a vocação integral da pessoa e o
bem de toda a sociedade.
4.
A prioridade do bem comum. [...] A justa distribuição dos bens é um dever de
justiça, a caridade deverá estimular e acompanhar a justiça [...]. A Gaudium et Spes resgata o antigo
princípio de Santo Tomás: ‘Na necessidade
extrema, todas as coisas são comuns, isto é, todas as coisas devem ser tornadas
comuns’.
5.
A propriedade privada é de índole social, fundada na lei do destino comum dos
bens porque ele assegura a cada membro os bens indispensáveis”.
p.
233 – “São três as vigas mestras da justiça social segundo Paulo VI:
1.
A construção da Civilização do Amor. [...] Paulo VI entende por civilização
aquele conjunto de condições morais, civis, econômicas, que permitem à vida
humana uma possibilidade melhor de existência, uma plenitude racional e um
feliz destino eterno.
2.
O Papa constata a diversidade e a complexidade das situações em que se
encontram os cristãos no mundo.
3.
A convicção de que o anúncio do Evangelho está indissoluvelmente ligado à
promoção e à defesa dos direitos das pessoas e dos povos, por meio da promoção
de um desenvolvimento integral e não somente econômico dos povos”.
p.
234 – “Duas grandes questões fizeram o Papa sofrer: o subdesenvolvimento que
atingiu países do terceiro mundo e a dependência destes países com os
desenvolvidos”.
“A
encíclica Populorum Progressio (1967)
enfrenta a universalidade da questão social do empobrecimento e da exploração
[...]. A encíclica apela para um desenvolvimento humano integral de todo o homem e de todos os homens. [...]
Segundo a Populorum Progressio, para
que seja verdadeiramente humano, o desenvolvimento tem de ser integral, quer
dizer, não somente econômico, mas também cultural, social, político,
espiritual, moral e religioso”.
p.
235 – “O Papa Pauli VI empregou termos severos para criticar o capitalismo como
‘sistema nefasto’”.
“O
caminho da humanização para construir a justiça social era muito ressaltado por
Paulo VI. De fato, ele assume a humanização ou humanismo total para delinear o
rumo do desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens e chega até
a falar de humanizar a fé”.
“[...]
para a Populorum Progressio o
desenvolvimento é o novo nome da paz e invoca uma justiça mais perfeita entre
os homens porque o mundo está doente”.
p.
236 – “A solução para o Papa não é ter saudade da área rural, mas ‘construir a cidade, lugar da existência dos
homens e de suas extensas comunidades, criar novos modos de proximidade e de
relações, perceber uma aplicação original da justiça social, tomar o comando do
futuro coletivo que se anuncia difícil [...]’”.
p.
237 “O documento do sínodo a Justiça no
Mundo reconhece que a ação pela justiça é ‘uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho’’.
“A
prática da justiça exige também o questionamento sobre os direitos na própria
Igreja e sobre o uso do dinheiro e do poder dentro da Igreja”.
p.
238 – “O Papa João Paulo II tem empenho renovado e permanente para a
evangelização da cultura”.
“A preocupação maior da Doutrina Social de
João Paulo II é uma profunda e irreversível transformação cultural, mais do que
mudar as estruturas políticas, sociais e econômicas”.
p.
239-240 – “O Papa percebeu que o trabalho é a chave essencial de toda a questão
social. Na encíclica Laborens Exercens,
ele atualiza toda a Doutrina social sob o prisma privilegiado do trabalho. O
trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência e da dignidade
humana. [...] Trata-se de um bem para a pessoa humana, porque não apenas
transforma a natureza, adaptando-a às suas próprias necessidades, mas também
porque o trabalho realiza a pessoa humana e até, em certo sentido, torna-a mais
humana”.
p.
240-241 – “O homem é sujeito do trabalho e fim do processo econômico e não
objeto como o sistema impõe através da mercadorização
do trabalho [...]. O Papa ostra também seu interesse pelo sindicalismo,
afirmando que os sindicatos são expoentes
da luta pela justiça social, pelos justos direitos dos homens do trabalho”.
p.
241 – “[...] o Papa declara que o direito à propriedade privada está
subordinado ao direito ao uso comum, ou seja, ao destino universal dos bens”.
p.
242 – “Deus deu a terra a todo o gênero
humano, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar
ninguém. Está aqui a raiz do destino universal dos bens da terra”.
p.
244 – “O caminho para a justiça social é, então, um verdadeiro desenvolvimento
integral e solidário [...].
p.
245 – “Esta é uma importante contribuição da Centesimus Annus: a meta do desenvolvimento não é o
hiperdesenvolvimento dos países ricos, mas a dignidade das pessoas e dos povos.
[...] João Paulo II resgata o pensamento de Paulo VI, que, para superar os
conflitos sociais, precisa-se de um desenvolvimento integral porque o
desenvolvimento é o outro nome da paz”.
“A
II Conferência Episcopal latino-americana, realizada em Medellín em 1968,
conseguiu transformar a Igreja Católica da América Latina, que começou
finalmente a ver a grande injustiça social que estava afetando o continente,
ferindo a consciência cristã e oprimindo a maioria”.
“Medellín
manifesta uma Igreja que quer estar ao lado dos pobres: ‘Não temos soluções técnicas, nem remédios infalíveis. Queremos sentir
os problemas, perceber as exigências, compartilhar as angústias, descobrir os
caminhos e colaborar nas soluções’ [...]”.
p.
246 – “A missão da Igreja para superar a gritante injustiça social é contribuir
para a promoção integral do homem e das comunidades do Continente”.
p.
246-247 – “Medellín revela que a justiça gera a paz porque a paz é fruto da
justiça. A Igreja de Medellín fez dela o grito dos pobres e desceu no meio
deles para libertá-los da opressão e para realizar uma libertação integral da
pessoa humana e dos povos”.
p.
247 – “A evangelização é, por natureza, libertadora. [...] Puebla diz que a
libertação pertence à íntima natureza da evangelização”.
“A
libertação que se vai realizando na história, em nossos povos e em nossa vida
pessoal, tem de abranger as diversas dimensões da existência: o social, o
político, o econômico, o cultural etc., ou seja, o conjunto das relações
humanas”.
p.
248 – “Os ensinamentos sociais da Igreja se enriquecem, por meio da
contribuição da Igreja Latino-americana, com uma dimensão evangélica
fundamental que é a libertação”.
“Puebla
exige uma concepção libertadora e não mais desenvolvimentista da sociedade.
Essa é a grande novidade”.
“Puebla
retoma o princípio da destinação universal dos bens: os bens e as riquezas do
mundo, por sua origem e natureza, segundo a vontade do Criador, são para servir
efetivamente à utilidade e ao proveito de todos e para cada um dos homens e dos
povos”.
p.
249 – “Medellín e Puebla introduzem a chamada ‘irrupção dos pobres’ na
construção da justiça social por meio da opção preferencial pelos pobres. [...]
Os pobres se tornam finalmente sujeitos da construção da justiça social, e não
mais meros objetos”.
p.
250 – “A IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho (Santo
Domingo 1992) não gera nada de novo, mas retoma o caminho da promoção humana
quanto à construção da justiça social”.
p.
251 – “É a promoção humana que domina o pensamento de Santo Domingo. [...]
Santo Domingo não afirma, como fez Puebla, que a evangelização é, por natureza,
libertadora”.
p.
252 – “O Pontifício Conselho Cor Unum publicou
em 1996 o importante documento ‘A Fome no mundo – um desafio para todos: o
desenvolvimento solidário’, onde se declara que a questão da fome é uma questão
de justiça social”.
p.
253 – “O documento resgata a destinação universal dos bens, pilar da doutrina
social da Igreja, fundada a dimensão bíblica que revela como Deus destinou a
terra e todos os seus bens a todos os seres humanos”.
p.
254 – “O Conselho Pontifício chega a proferir clara e feroz condenação do
latifúndio, declarando que o latifúndio é intrinsecamente ilegítimo por três
motivos: 1) contrasta nitidamente com o princípio da doutrina social da Igreja
que ‘a terra foi dada para todos e não
somente para os ricos’; 2) também porque o latifúndio nega a uma multidão
de pessoas o direito de satisfazer as necessidades próprias, da família, da
comunidade e da nação; 3P os privilégios assegurados pelo latifúndio
são causas de lutas escandalosas e de situações de dependência e de opressão,
tanto à escala nacional quanto internacional’”.
“O
Conselho Pontifício exige uma reforma agrária efetiva, justa e eficiente”.
p.
255-257 – “Conclusões sobre a Doutrina
Social da Igreja
1.
De Leão XIII a João Paulo II, o magistério da Igreja tem manifestado uma
preocupação sempre crescente pelo problema da justiça social.
2.
A destinação universal dos bens da terra é o fio condutor de toda a Doutrina
Social da Igreja, que declara como os bens são comuns e ninguém pode ser
excluído [...].
3.
O resgate do bem comum como o referencial de todas as ações e o fim dos
sistemas sociopolíticos e econômicos [...].
4.
A propriedade privada tem forte hipoteca social, pois é subordinada ao bem
comum e, por isso, pode ser expropriada quando prejudica a propriedade
coletiva.
5.
Os direitos humanos como trilho da justiça social.
6.
A justiça social torna-se a justa distribuição dos bens da terra, assegurando
os direitos de cada pessoa e de cada povo da terra, garantindo o acesso ao bem
comum e as condições básicas para a realização da dignidade humana.
7.
O dever de justiça, chamado também de solidariedade, é resgatado depois de
vários séculos de silêncio e torna-se um compromisso não somente ético do
cristão, mas também evangélico.
8.
A justiça social precisa ser alimentada pela dimensão religiosa [...].
9.
A opção preferencial pelos pobres [...].
10.
O desenvolvimento não pode reduzir-se a uma mera questão econômica, mas tem de
envolver todas as dimensões da vida.
11.
A libertação integral como caminho da justiça social pertence mais ao
Magistério da Igreja latino-americana, enquanto o Magistério Pontifício adota
mais a promoção humana.
12.
Os dois sistemas sociopolíticos e econômicos, o capitalismo e o comunismo, não
conseguem realizar a justiça social”.
3.
O
COMPROMISSO PELA JUSTIÇA E PELA PAZ, PELA LIBERTAÇÃO INTEGRAL E PELA DIMENSÃO
SOCIOTRANSFORMADORA: DIMENSÃO CONSTITUTIVA OU INTEGRANTE DA EVANGELIZAÇÃO?
P.
259 – “O Concílio Vaticano II desencadeou [...] um processo revolucionário na
Igreja Católica, invertendo os papéis e resgatando a eclesiologia bíblica: de
uma Igreja fechada dentro dos muros religiosos e protegida por meio de uma
fortaleza de normas e regras se passou a uma Igreja missionária, fora da
muralha eclesiástica e no meio do mundo como fermento de libertação e
sacramento de salvação. [...] passou-se a uma Igreja que saiu da sacristia e
foi ao encontro dos irmãos, com uma atenção especial aos pobres sendo os
prediletos de Jesus Cristo”.
p.
264 – “[...] o Sínodo Episcopal, é que o conceito bíblico de libertação entrou,
pela primeira vez, no magistério da Igreja”.
p.
264-265 – “São laços intrínsecos entre a evangelização e promoção humana que
revelam como não há uma evangelização cristã sem o compromisso pela
transformação da sociedade, construindo justiça, paz e libertação integral”.
p.
265 – “[...] o compromisso pelos direitos humanos está intimamente ligado com a
missão da Igreja no mundo contemporâneo. Ainda mais, a missão da Igreja está
profundamente ligada ao homem e, por isso, declarou que o homem e a principal e
fundamental via da Igreja”.
p.
266 – “Efetivamente, para a Igreja,
ensinar e difundir a doutrina social pertence à sua missão evangelizadora e faz
parte essencial da mensagem cristã, porque essa doutrina propõe as suas
consequências diretas na vida da sociedade e enquadra o trabalho diário e as
lutas pela justiça no testemunho de Cristo Salvador”.
p.
268 – “Segundo Puebla, a justiça no mundo acontece por meio de um processo de
libertação integral da humanidade e do mundo [...]”.
p.
269 – “[...] Puebla foi, sem dúvida, o ápice do caminho de assimilação do
espírito e do conteúdo da mensagem do Sínodo dos Bispos de 1971: A Justiça no Mundo”.
“[...]
o documento de Santo Domingo revelou que a grande preocupação dos Bispos
latino-americanos não foi uma evangelização libertadora, mas uma evangelização
inculturada”.
p.
270 – “O episcopado brasileiro, o maior e mais influente da América Latina,
endossou a conquista do Sínodo de 1971, fazendo sua a intrínseca união entre
evangelização e o compromisso pela justiça”.
p.
272 – “[...] a Igreja não pode, sob pena
de trair a missão de Jesus, separar a salvação da promoção da justiça e da
libertação. [...] Com esta explicitação, a Igreja Católica brasileira
revela a íntima união entre o compromisso de transformação da sociedade,
chamado ‘a dimensão sócio-transformadora’, e a missão evangelizadora. Ou seja,
a evangelização é por natureza libertadora e comprometida com a justiça
social”.
p.
273 – “[...] ou a evangelização da Igreja
é compromisso pela justiça e pela libertação ou não é missão de Jesus Cristo
[...]”.
4.
A
JUSTIÇA SOCIAL COMO HORIZONTE DO TERCEIRO MILÊNIO E CRITÉRIO PARA SER IGREJA NO
NOVO MILÊNIO
p.
274 – “A Teologia Moral tradicionalmente costumava distinguir a justiça em
comutativa e legal”.
“Hoje
há um consenso se se fala de justiça social, pois se tornou a busca comum dos
vários agentes sociais: o político, o cientista, o religioso, o lutador. [...] ‘A expressão justiça social foi criada
oficialmente por Pio XI e empregada nos documentos posteriores do magistério
eclesiástico para expressar o ideal ético da ordem econômico-social’ [...]”.
p.
274-275 – “No âmago da justiça social estão três pilares:
1.
A igualdade de todos os seres viventes [...].
2.
A alteridade nas diferenças entre os seres viventes, assegurando o direitos que
cada um tem em todos os níveis para construir a dignidade humana e cósmica.
3.
A mudança social, questionando a ordem estabelecida e desabrochando uma força
dinamizadora de mudança [...]”.
p.
276 – “A modernidade produziu o vírus do individualismo e da livre iniciativa.
p.
277 – “É inacreditável e surpreendente a virada planetária que está dando o
Fórum Social Mundial por meio da ousadia dos indignados e revoltados contra o
sistema neoliberal e contra o imperialismo do capital internacional”.
p.
278 – “A justiça social é e deve ser a porta de entrada para o novo milênio se
queremos, de verdade, o outro mundo possível [...]”.
p.
279 – “A justiça social tem de abranger não somente a dimensão humana, mas
também a cósmica”.
p.
280 – “Precisamos retomar a visão cristã quanto a outra pessoa: como algo de
importante e sagrado que não se pode usar e descartar segundo o próprio desejo.
[...] A relação neoliberal é intrinsecamente anticristã, porque o outro é
considerado como ameaça que pode prejudicar o meu proveito e, então, tenho de
destruí-lo”.
p.
280-281 – “[...] a essência da vida é a relação e a da vida cristã,
especificamente, é a comunidade”.
p.
281 – “Construir novas relações, hoje em nível global e cósmico, permeadas pelo
novo paradigma, implica duas dimensões interdependentes: pessoal e comunitária.
[...] Precisamos das pessoas e das estruturas do bem comum, para combater as
nefastas atitudes pessoais e as estruturas do mal”.
p.
282 – “[...] o âmago da justiça social é, então, o amor, além de ser o seu
ápice”.
“Esta
mudança global de relações é um grande desafio da pós-modernidade, que
necessita, de maneira irrenunciável, de duas dimensões: a luta e a mística. A
luta é o compromisso de mudança e de construção do outro mundo que é possível
[...]. Mas tudo isso comporta muito sacrifício [...]. Aqui entra a mística como
alguém que nos leva à fonte da vida para alimentar a caminhada [...]. A mística
é o encontro com a fonte da vida: o Deus Amor”.
p.
283 – “São os pobres os detentores da mudança social. Mas os pobres na linha
evangélica. Isto é, os pobres libertados de todas as opressões e com o anseio
da alteridade, conscientes da necessidade comunitária dos outros e do Outro
(Deus)”.
p.
284-285 – “[...] os pobres são a única perspectiva de mudança porque do outro
lado vem somente a acirrada ação para segurar a situação atual. Opção
preferencial pelos pobres significa, então, abraçar a mudança e encaminhar a
história rumo a um futuro de justiça social”.
p.
285 – “A justiça social é a mediação histórica para fazer acontecer hoje o
Reino de Deus. É a maneira pós-moderna para tentar concretizar a vontade e o
plano de Deus sobre a ordem planetária e cósmica”.
p.
286 – “[...] evangelizar é suscitar a esperança de um novo milênio de justiça e
de paz”.
“O
profundamente humano é também o profundamente cristão”.
p.
288-289 – “Homens e mulheres do planeta Terra, deixem-se infectar pelo vírus da
justiça, pois é o único vírus que não mata, mas que faz erguer nossas cabeças e
arregaçar as mangas para mudar o modelo único do neoliberalismo que continua
sacrificando todos os excluídos sobre o altar do capital”.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SELLA, Adriano. Ética da justiça. p. 187-288.
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